
Janaina Paschoal ‘abre guerra’ contra crianças e adolescentes trans
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REUTERS/Ricardo Moraes
Uma emenda a um projeto de lei que tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo quer proibir a oferta de terapia hormonal a crianças e adolescentes transexuais menores de 18 anos e a cirurgia de redesignação sexual a menores de 21 anos pelas redes pública e privada paulistas.
A medida foi proposta pela deputada Janaina Paschoal (PSL) como emenda a um projeto da deputada Erica Malunguinho (PSOL), primeira mulher transexual da Assembleia Legislativa de São Paulo.
O PL institui um programa estadual que trata de questões de saúde da comunidade LBGTI+. Está na Comissão de Constituição, Justiça e Redação da Alesp. Caso aprovado, passará ainda por duas comissões até que seja votado em plenário. Se o requerimento de urgência for aprovado, a proposição segue direto para o plenário. A emenda tramita junto ao projeto.
Para Malunguinho, a emenda de Paschoal vai na contramão da posição de especialistas e organizações sobre o assunto e reflete uma posição autoritária. Ela diz que pode resultar em danos, como uma maior marginalização da população transexual e mais automedicação na clandestinidade.
“Estamos fazendo de tudo internamente para que [o projeto] não seja prejudicado por um discurso baseado no senso comum, uma vez que já existem muitas elaborações, discussões e pareceres importantes sobre o tema”, diz.
As alterações propostas por Paschoal ao projeto da colega causam impacto direto nas atividades de dois ambulatórios estaduais, um ligado ao Hospital das Clínicas da USP de São Paulo e outro da Unicamp, que acompanham crianças e adolescentes trans. Há um terceiro serviço no país, ligado à UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Criado em 2010, o ambulatório do HC acompanha hoje 85 crianças e 180 adolescentes. Há uma fila para triagem de mais 140 interessados. As famílias também são acompanhadas, e o grupo realiza orientações em escolas e abrigos. O trabalho se baseia em experiências holandesas e norte-americanas de mais de 20 anos.
Não fazemos diagnóstico apenas pelo comportamento expresso das crianças e adolescentes, mas, principalmente, pelas certezas internas que elas têm. Ninguém coloca nada na cabeça delas. Às vezes, o diagnóstico demora oito anos, dez anos para ser concluído, para termos a certeza de que não se trata de uma situação transitória, afirma o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do ambulatório do HC.
A deputada Janaína Paschoal afirmou à Folha de S.Paulo que o bloqueio hormonal pode tirar da criança a chance de se reconciliar com seu sexo biológico.
Segundo Saadeh, o uso de bloqueadores em crianças menores de dez anos pode ocorrer apenas para aquelas que já estão entrando em puberdade, fase que gera angústia, depressão, isolamento e afastamento escolar.
“Imagina [um menino trans] menstruando e desenvolvendo mama. A idade de entrada na puberdade é pessoal, individualizada e depende de fatores biológicos e não cronológicos. Há crianças entrando na puberdade aos oito anos”, afirma.
O médico diz que o bloqueio é totalmente reversível e só indicado para pré púberes, quando há quase certeza do diagnóstico. Com o bloqueio, ganhamos tempo para efetivar ou não esse diagnóstico. Já tivemos um caso de pré-adolescente que voltou atrás e o tratamento foi suspenso.
Isa, 13, foi uma das primeiras crianças no ambulatório a receber o bloqueio hormonal, pouco antes dos dez anos. Segundo a mãe, Alexsandra Maurício, desde os três anos ela já se mostrava diferente. Tinha horror aos brinquedos e roupas de meninos. De quatro para cinco ela já verbalizava que era menina e não menino. Achei que era fase, que ia passar, levei para psicólogo.
Aos oito anos, Isa começou a frequentar o ambulatório do HC. Foi chocante num primeiro momento entender que ela era trans. Eu já estava separada do meu marido, e a relação ficou bem pior. Com o resto da família foi tão ruim quanto. As pessoas não aceitam, acham que é muito novo para tomar tal decisão.
Nessa época, Alexsandra conta que a filha era muito introvertida, tinha poucos amigos na escola e sofria de depressão. Depois da mudança de guarda-roupa, do nome, virou uma criança brilhante. Mudamos ela de escola e lá ela já chegou como Isa na lista de chamada, muitos nem sabem que ela é trans. Os amigos de hoje não conheceram o João, diz a mãe.
Com o bloqueio hormonal, a mãe conta que Isa não apresentou crescimento de pelos no corpo, e o pênis ficou estagnado. Para ela, que sempre teve traços femininos, foi o céu. Vejo o sofrimento de muitos adolescentes que iniciam o bloqueio tardiamente, quando as características sexuais já estão manifestadas. É uma dor imensa para eles, muitos se automutilam.
Para Saadeh, a iniciativa da deputada, apesar de bem-intencionada, incorre em propagação de fatos que não correspondem às evidências atuais e baseadas em dados científicos sobre o tratamento, que, aliás, levaram o CFM (Conselho Federal de Medicina) a dar aval ao tratamento.
Em relação às cirurgias de afirmação de gênero ou de redesignação sexual, o psiquiatra diz que elas só ocorrem após os 21 anos, conforme já determinado pelo CFM.
No texto da emenda, Paschoal afirma que existem estudos no exterior, a evidenciar os males irreversíveis das intervenções de redesignação sexual, inclusive hormonais, em crianças e adolescentes e que muitos pediatras nos Estados Unidos estão revendo esses tratamentos invasivos.
Segundo Saadeh, no entanto, são pediatras conservadores do Meio-Oeste americano, que expressam opiniões e não evidências científicas. As afirmações não são corroboradas por outras associações médicas e pediátricas dos EUA e de outros países.
A deputada também argumenta que o projeto de lei não tem como finalidade regular o SUS, mas proteger a integridade física, psicológica e emocional das crianças e dos adolescentes.
“Seria por bem ela visitar o nosso ambulatório e presenciar o drama de famílias, crianças e adolescentes. A situação leva a grande sofrimento, isolamento social, abandono escolar e outros transtornos sociais”, diz Saadeh. O número de tentativas de suicídio e suicídio é quatro vezes maior na população adolescente transexual que na população geral.
Paschoal disse à Folha que foi convidada e aceitou o convite para conhecer em detalhes o trabalho feito no Hospital das Clínicas. “A princípio, penso que estou protegendo as crianças de qualquer forma de experimento. Mas vou ouvir todas as partes”, diz.
O médico afirma que o grupo não é contrário à emenda por questões ideológicas, mas porque luta pela preservação da saúde dessas crianças e adolescentes e suas repercussões nas famílias.
Elas existem e aqui estão sendo ouvidas e vistas. Não tem como negar a existência dessas crianças e adolescentes. Isso é negar a possibilidade de intervenção e diminuição de sofrimento e angústias. É um trabalho preventivo e resolutivo que já acontece em vários países do mundo.
Para ele, proibir a assistência pode expor esses jovens à marginalidade, consumo de hormônios sexuais sem acompanhamento e riscos sérios de agravos à saúde física e mental.
Da FOLHAPRESS